
Fazia os últimos preparos, verificava as pestanas e o rímel, o pó de arroz em demasia, os pêlos da barba que escapavam sempre à pinça e colocava por fim o batom vermelho que me oferecia uma extra confiança e contrastava com perfeição a tez pálida que o pó me oferecia.
Eu era uma artista, ninguém me podia tirar isso, a minha profissão era ser artista. O meu filho Paulo nunca me aceitou como isso, ao inicio ainda me vinha ver com a Judite:
-Mãe, que vergonha é essa? O meu pai é um artista!
Acabou a achar que eu era um palhaço, cheio de pinturas e cabeleiras que me escondiam a identidade e eu nunca o chamei de filho. Quando ele estava por minha casa, onde apareciam as minhas colegas ou até clientes
-É o filho da minha irmã
Oferecia-lhe 20 escudos para ele se entreter na rua com guloseimas. Hoje sou apenas um palhaço velho a realizar o último espectáculo.
-Estás velha Soraia, já não tens idade para isto
E logo apareceu uma cara nova a quem chamaram de “ a próxima Soraia”, tantos anos dedicado e agora sou apenas substituído.
No dia em que a Judite me apanhou os vestidos e as cabeleiras que me escondiam a calvície: pôs-me as malas à porta
-Porquê Carlos?
Antes era apenas o marido perfeito, as figurinhas do bolo perfeitas, as amigas da Judite todas me cobiçavam
-Porquê Carlos?
Mais tarde tornou-se alcoólica, o Paulo foi levado pela assistente social e entregue a uma família conhecida do outro lado de Lisboa e quando o acabou o dinheiro enrolou-se com o dono do café do Bico da Areia em troca de vinho e com os outros cães todos por dinheiro.
Visitava o Paulo de tempos a tempos, até ao dia em que ele se meteu na heroína – queria voar – ainda pensei vê-lo por vezes entre o público, talvez com a Gabriela, a enfermeira que o ajudava e com quem acabou por se casar
-Aquele não pode ser o teu pai Paulo, é uma artista
Mas eu não sou uma artista, sou um palhaço chamado Soraia que envelheceu. Eu sou o Carlos, sem pestanas nem unhas, sem cabeleiras nem pinturas, eu sou o Carlos que ajuda a Dona Aurorinha do terceiro andar com as compras que ela não pode dos joelhos, sou o Carlos que era cobiçado e teve um amor em tempos, sou o Carlos, o pai do Paulo.
Eu sou o Carlos
-Soraia faz com que o cliente da mesa nove beba champanhe, fá-lo gastar!
A Dona Amélia andava com o cesto por entre todas as mesas a vender chocolates e cigarros, foi ela que nos ensinou a dançar a todas, estava mesmo acabada, era a única verdadeira mulher entre nós, sentiria a sua falta.
A Sissi chegava agora aos bastidores, olhei-me uma ultima vez ao espelho, verifiquei as pulseiras e os colares, estava à altura do meu último espectáculo
-Soraia para o palco!
Ao subir as escadas senti as costas a falhar, com espasmos contínuos, a luz focou em mim e senti os pulmões a abafarem, a tuberculose piorava de dia para dia, julguei ver o Paulo na plateia – talvez com a Gabriela -, julguei ver a Judite ao lado do Alcides, o porteiro e quando a musica começou e os meus lábios mexeram de acordo com a voz da Marilyn Monroe, ali a morrer eu ouvi uma ultima vez
-Porquê Carlos?